A caixa

Estava um fim de tarde de Domingo, um tanto inquieto. Havia um movimento estranho, nas ruas estreitas, da baixa da cidade e uma luz, que mais parecia, uma falta de luz...
Um cinzento tinha-se apoderado das cores, de todas as cores, de tudo o que era trivial.
Enquanto Rafaela, se dirigia para casa, surgiam na sua mente, pensamentos... uma dor intrínseca, que ela não conseguia explicar... um aperto no coração.
Na verdade, ela procurava na sua memória, os momentos felizes, que outrora, tinha vivido com Pedro, mas apenas, lhe vinham à cabeça as imagens; das discussões, dos copos partidos, das portas fechadas à força, das palavras ríspidas, da ira nos olhos daquele que amava profundamente, das feridas das tentativas de suicídio, do desespero, dos gritos silenciosos que tantas vezes, foram ouvidos por outros, que igualmente, viviam desta forma.
Nas ruas estreitas que percorria, tinha a sensação que os prédios se precipitavam, sobre ela, numa incrível sensação de sufoco.
Está um frio absurdo, que é visível na respiração, em todos que por ela passam.
Aperta os botões do casaco até acima, enquanto coloca o cabelo, por trás das orelhas.
Está com um olhar pesado e assustado, cheira a medo, a insegurança.
Rafaela, aos dezoito anos, era vista entre os amigos, como a animadora de serviço. Era ela, quem habilmente, punha um sorriso na cara de qualquer um. Os amigos viam nela, aquilo que queriam ser e que não conseguiam, mas ela conseguia, porque era algo que lhe estava no sangue. Algo mudou. Algo fez com que Rafaela, perdesse o brilho no olhar e o sorriso com que brindava todos à sua volta e com que iluminava, todos os lugares, por onde passava.
Faz hoje, dois anos, desde a mudança. A grande mudança da vida da Rafaela.
Ainda hoje, ela pensa como pôde ter sido tão ingénua e tão burra.
Apaixonou-se pelo Pedro, quando na altura, o Pablo fazia dela a mulher mais feliz do Mundo.
Abandonou o Pablo, porque viu no Pedro, o mistério e a adrenalina, que tanto procurava.
Esteve para ir morar para Barcelona. Até já tinham um apartamento, em vista e já tinham contactado com a dona do prédio, que lhes tinha dito, que seriam bem-vindos. O curso de Filosofia, estava quase a terminar e a vida parecia-lhe tão aborrecidamente, organizada. Em conversas, chegou a usar o termo “entediante” e dizia que o Pedro, era tudo o que ela precisava, para tornar a sua vida menos monótona.
Faz hoje dois anos, que começou o pesadelo, o fim do descanso e da felicidade.
No início, foi tudo um mar de rosas. Tudo era perfeito.
Mudou-se para o centro da cidade, para umas águas-furtadas, onde vivia Pedro. Tinha uma pequena janela redonda, de onde se via o rio.
Parecia um romance saído de um filme, mas não seria perfeito para sempre e deixou de o ser, assim que Rafaela, descobriu uma caixa vermelha, que a deixou tremendamente inquieta.
Uma caixa com duas aberturas, vermelha como o sangue.
No dia, em que a descobriu, perguntou a Pedro, o que é que ela continha e recebeu em troca, um valente espancamento.
Lembra-se como se fosse ontem, quando ele pegou na primeira coisa que encontrou, para a agredir. Os seus olhos abriram-se de ira e da sua garganta, só ecoavam, palavras cortantes, de uma frieza sem igual. Repetiu vezes sem conta, que a matava, se ela tocasse na caixa e que ela jamais, a deveria ter visto. “Foi um erro. Cometeste um grave erro! Não sabes o que fizeste!”, disse-lhe completamente, descontrolado.
O rosto de Rafaela, ficou irreconhecível, pelo menos, durante um mês. As lágrimas que lhe escorriam pelo rosto, ardiam nos golpes. Mais destroçado que o seu rosto, ficou o seu coração.
A partir desta altura, Pedro, começou a controlar-lhe todos os passos e jamais a deixou aproximar-se da caixa. Foram várias as tentativas de Rafaela, para fugir dali, mas sempre sem êxito.
Passou um ano e Rafaela, descobriu que estava grávida. Sentia-se perdida e desesperada. Não sabia o que fazer. As noites de amor, que tinham vivido no início, tinham deixado de o ser. Agora só restavam, sofrimento e dor, das violações e dos caprichos de Pedro.
Nas ruas que percorreu até casa, estava a tentar arranjar coragem, para contar a Pedro da sua gravidez. Estava consumida pelo medo. O medo da reacção dele.
Se ele lhe batesse poderia perder o bébé.
Chegou a casa e colocou a chave na porta, que abriu quase sem acusar a sua chegada.
Entrou e olhou em volta, para ver se Pedro, já tinha chegado. Não o viu. Pousou a mala e despiu o casaco.
Quando ía a passar pela sala, em direcção à cozinha, Pedro, que estava sentado no sofá, perguntou-lhe de onde vinha. Tentou disfarçar, mas a sua voz trémula, denunciou-a. Disse-lhe que precisavam de falar, porque tinha algo muito importante para lhe dizer.
Ele levantou-se e disse-lhe “Calculo que seja importante, com esse nervosismo. É bom que não me mintas, porque sei exactamente onde estiveste!”
Rafaela, perdeu a côr, ficou pálida e perplexa, não que fosse algo novo para ela, o facto de ele saber onde ela tinha ido, mas a frieza dele, ainda hoje, mexia muito com ela.
Baixou a cabeça, como se se estivesse a concentrar e a ganhar coragem, para o que se iria seguir.
“Vim agora do médico... Ele disse-me que estou grávida de quatro meses!”, disse-lhe destemida, mas com uma lágrima, a escorrer-lhe o rosto, outrora, tão cheio de felicidade.
Pedro, estava em pé, diante dela. Com um movimento sinistro, levanta a cabeça e sorri.
Um olhar impenetrável e sem brilho, quase de loucura.
Com a rapidez, de um predador, Pedro espetou no peito de Rafaela um punhal e enquanto ela, se esvaia em sangue, foi buscar a caixa vermelha.
Do seu pescoço tirou um fio, que continha as duas chaves, que abriam as respectivas divisórias.
Rafaela, mal conseguia respirar. Queria proferir as suas últimas palavras, mas não conseguia.
Pedro pegou na caixa, colocou-a no colo de Rafaela e deu-lhe o fio com as chaves.
Ajudou-a a colocar a primeira chave na fechadura.
Ela começou a deitar sangue pela boca e sua visão ficou turva. Deu a volta à chave e abriu a caixa. Tossiu.
“Bom dia, meu amor. Trouxe-te o pequeno almoço. Calculo que tenhas fome...a duplicar! Estás branca. O que se passa?”
“Abraça-me! Hummm... bem forte. Amas-me?”
“Hey! Que se passa? Amo-te muito, sabes bem disso!”
“Tive um pesadelo horrível, Pedro! Sonhei connosco e foi horrível”
Pedro abraçou-a e tentou acalmá-la. Não percebia, que sonho poderia ela ter tido, para acordar assim.
Rafaela teve um menino. Chamou-lhe de Frederico.
Mudaram-se para uma casa maior, com garagem.
No oitavo aniversário de Frederico, os pais ofereceram-lhe uma bicicleta e esconderam-na, na garagem.
Num jogo, que fizeram para ele a descobrir, Frederico, foi muito perspicaz e rapidamente, encontrou o seu presente, mas... não foi só o presente que encontrou.
Num cantinho da garagem, numa porta de um móvel, ele encontrou uma caixa... uma caixa vermelha... como o sangue!

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