Esquissos de amor (o fim do Mundo)

O Mundo fechou-se, terminou num grito profundo de inconformidade e de desespero.
Depois do Verão mais quente dos últimos anos, tal como os meteorologistas tinham previsto, era agora a vez da estação da morte, do cair das folhas.
Chegaram os dias de chuva e tempestade, mas tu, meu amor, continuavas sereno, no teu sono e enquanto te contemplo, lembro-me das promessas que me fizeste.
Prometeste, no dia em que me abraçaste, pela primeira vez, que nunca me deixarias e que nada, nem ninguém, nos iria separar.
Conhecemo-nos, numa Primavera, num jardim onde tinha ido, para uma aula de Tai Chi Chuan. Essas aulas sempre me acalmavam, do stress do trabalho e da vida. Eram o meu tubo de escape.
Nesse dia, tivemos um espectador atento e uma aluna desconcentrada. A minha concentração, estava focada, num ilustre desconhecido, que se tinha sentado, confortavelmente na relva macia, poucos metros, à nossa frente. Sempre com um sorriso na cara, de gozo ou contentamento, não sei!
Na altura, não sabia que era de contentamento, porque só me confessaste, no primeiro jantar, que fizemos em minha casa.
Bem... não foi bem em minha casa... era para ser, mas a concepção do jantar, não correu muito bem e acabámos por ir jantar, ao restaurante do teu padrinho. Tinham uns petiscos fantásticos e umas goluseimas que tu adoravas.
Adoravas doces e dizias sempre, que o teu doce favorito era eu. Fazias-me corar e fazias isso de propósito, porque sempre soubeste, que não aguento elogios.
Nos tempos, em que estudava, lembro-me de terminar um trabalho e de te mostrar e de me dizeres “ Está muito bom! Está incrível! Nota-se que foi feito por ti, tem o teu toque, o teu jeito especial de transmitires aos outros uma mensagem. “
“ O teu jeito especial...”, penso e desfaço-me em lágrimas.
Tu, permaneces quieto, no teu sono... no teu sonho, calmo e infinito.
Na verdade, trocava todas as aulas de Tai Chi, pelos teus abraços e pelos teus beijos, porque nada nesta vida, me acalmava mais, do que estar contigo.
Lembro-me no dia em que juntámos os nossos amigos e te fiz uma surpresa.
Surpreendi-te, quando te mostrei os desenhos que fazia, quando ficava a ver-te dormir e para fugires ao embaraço, disseste com um sorriso, que tinha apanhado o teu melhor ângulo e que os meus desenhos faziam milagres. Apressei-me a dizer-te ao ouvido, que os meus desenhos não fazem milagres e que se eles ficaram, como todos o disseram, lindos, só podia ser, graças a ti. Olhaste-me nos olhos e passaste-me a mão pelo rosto, deste-me um beijo e sorriste. Disseste que me irias compensar, pelos lápis de carvão e pela sépia, pelo o tempo e paciência, pelo desgaste dos meus lindos olhos.
Saímos de manhã, para chegarmos ao Alentejo, às horas que combinaste, com os teus amigos. O teu melhor amigo, faz anos e este fim-de-semana, promete... promete muitos copos, muita festa, muitas gargalhadas e algumas escapadelas, para o nosso lugar secreto, o nosso cantinho.
Sempre que íamos para o Alentejo, fugíamos, sem dizer nada a ninguém, por algumas horas.
Encontrámos um lugar, que achámos que tinha de ficar só entre os dois. Ficava numa das margens do rio, numa zona, que tinha uma pequena encosta e onde o rio entrava e formava uma pequena lagoa. Tinhamos lá uma casa, porque desde a primeira vez, a senhora que ali morava, nos disse, que se quisessemos, pagávamos uma anualidade e tinhamos sempre uma casa ao nosso dispôr. Dissemos logo que sim e assim foi.
Adorávamos ver o pôr-do-sol, naquele sítio. Era magnífico!
Sexta-feira, perto das 8 horas da manhã, o céu está cinzento e caem uns chuviscos, estamos a passar a ponte, em direcção ao Sul e coloquei no leitor de Cd’s, o novo dos Jimmy Eat World, na música Night Drive, uma das nossas favoritas.
Comecei a ouvir o telemóvel a tocar: “ATENDE O TELEMÓVEL. ATENDE O TELEMÓVEL. ATENDE O TELEMÓVEL. ATENDE A PÔRRA DO TELEMÓVEL. ATENDE O TELEMÓVEL. ATENDE O TELEMÓVEL. ATENDE O CARALHO DO TELEMÓVEL. ATENDE. ATENDE. ATENDE.”
Já me estou a passar!!! Não encontro a mala e este toque não lembra a ninguém, não sei onde estava com a cabeça, quando o escolhi.
Olhaste para trás, para ver se conseguias ver a mala e nestes segundos, nestes pequenos instantes, não me lembro ao certo, se a viste ou não.
Lembro-me de gritares, mas não me lembro o que disseste. Só sinto umas dores no corpo enormes.
Olhei para ti, ao meu lado, o rádio já não tocava e lá fora chovia.
Chegaram os dias de chuva e tempestade, mas tu, meu amor, continuavas sereno, no teu sono.
Chamei-te por diversas vezes... tentei perceber o que se tinha passado... toquei-te, para acordares, mas nas minhas mãos senti um líquido espesso e aveludado. Estavas ferido e nas minhas mãos, tinha agora o teu sangue.
Estava tudo virado do avesso. Libertei-me do cinto de segurança e o facto de não acordares, deixou-me desesperada. Chorava e as minhas lágrimas, misturavam-se com o sangue que me escorria pela face.
Acorda meu amor! Acorda! ACORDA, POR FAVOR! ( QUE SE PASSA?)
Agarrei-me a ti. Não conseguia interiorizar, o que estava à frente dos olhos. Esta realidade brutal e fria que se apoderava a cada minuto de consciência.
ACOOOOOOOOORDAAAAAAAAAAAAAAA! - repeti mil vezes, enquanto te abraçava numa tentativa desesperada da minha voz, fazer-te levantar desse teu sono.
Olhei e vi-te, com o teu rosto sereno, como tantas vezes te tinha desenhado, com lápis de carvão e sépia.
Senti-me a desfalecer, à medida que ía tomando consciência, que seria a última vez, que iria ver o teu rosto e que iria tocar as tuas mãos.
Chegaram umas pessoas... querem-me tirar do carro e estou tão fraca... só quero ficar contigo e digo-lhes isso, mas dizem-me que tenho de sair, porque a ambulância está à minha espera.
Não te quero deixar, meu amor. Quero que cumpras a promessa que fizeste.
De todos os dias cinzentos já vividos, este foi aquele, que faria tudo para o apagar da minha vida.
Do meu amor, ficaram as memórias, porque quis que levasses contigo os desenhos, para que nunca te esquecesses de mim.
Foi assim, que para mim, o Mundo se fechou, terminou num grito profundo de inconformidade e de desespero.

Comentários

Anónimo disse…
Esquissos de amor, é um dos mais belos contos que li, o que não me surpreendeu vindo de alguém com tantas capacidades como tu. A escrita começasse a tornar uma dessas qualidades, e este texto mostra bem como o fazes bem.
É um conto que meche muito com as pessoas e nos faz pensar no quanto a vida é imprevisível, e o quanto é importante amar e viver o máximo possível.
Obrigado por partilhares os teus textos, as tuas criações, tão hábilmente escritas!

Sabes que te adoro!

Mensagens populares deste blogue

3º Calhau a Contar do Sol

X - Acto

A história mais linda...