Estranhas melodias

Olhei pela janela... lá fora começa a chover e o mar mostra-se mais revoltado do que nunca.
Depois desta visão, fiquei com uma vontade enorme de ir tocar, no piano de cauda, que o meu avô me deixou no testamento.
Quando o trouxeram nem queria acreditar.
Coloquei-o na sala de estar, que tem umas portadas em vidro, com vista para o mar.
Abro as cortinas e sento-me no banco... espreguiço-me... estalo os dedos e lanço-me nas teclas, com liberdade total. Apodera-se de mim uma energia única e uma sensação de leveza. Sem pauta, vou tocando nas teclas e formando as melodias.
Vêm-me à memória, momentos da minha infância, em que o meu avô passava horas a ensinar-me, todas as melodias do seu tempo.
O meu avô dedicou muito tempo da sua vida à música e tocar piano era para ele, uma paixão... uma paixão que ultrapassava qualquer outra.
Ficava horas fechado num quarto, a tocar no seu piano e a compor as suas músicas. Passava dias inteiros assim, o que deixava a minha avó furiosa.
Eu ficava no jardim a ouvir a música que saía da janela do quarto, enquanto tomava conta dos meus irmãos mais novos. Já as sabia de cor, por vezes dava por mim a trauteá-las, nas aulas.
Estão a bater à porta.
- Já vou! - disse.
Batem insistentemente, como se não me tivessem ouvido.
Apresso-me para ir abrir a porta e quando olho pela janela lateral, vejo que é o meu melhor amigo André, completamente encharcado e a tremer de frio.
- Estava a ver que me ías deixar na rua... quase a morrer de hipotremia! - disse-me a tremer, enquanto me dava um beijo.
- André... estás gelado. Tens noção disso? Esse beijo podia ter ficado para depois, não podia?
- Foi a recompensa por me teres deixado tanto tempo lá fora. Já estou a bater à tua porta, há uns dez minutos e tu... NADA!
- Dez minutos?! Deves estar a fazer curto-circuito, porque só ouvi bater 4 vezes e foi imediatamente antes de a abrir.
- Devias estar muito ocupada!
- Deixa-te de gracinhas e vai ao meu quarto. Veste qualquer coisa quente e traz a tua roupa molhada, para a pôr a secar.
Conheci o André na Universidade. Fomos colegas nos últimos anos e desde que nos conhecemos, que não nos perdemos de vista. Não temos segredos e ele é quase como um irmão para mim.
Vou acender a lareira, porque está a ficar um fim de tarde muito frio.
Ouvi o André a descer as escadas.
Soltei uma gargalhada!
- Estás lindo André. Espero que não apareça mais ninguém, porque senão lá se vai a tua reputação de engatatão. Essas listas rosa-choc, ficam a matar-te e a mim... matam-me de riso!
- Tens muita piada. Já pensaste em fazer um casting, para aqueles programas de humor dedicados à terceira idade? - respondeu furioso, enquanto me esfregava com a roupa encharcada, numa pequena vingança infantil.
- Estou a ver que aproveitaste para pentear o teu cabelo. Deixa-me ajudar-te!
Atirei-lhe a t-shirt que ainda pingava e fugi em direcção à cozinha.
- Tiras-me do sério! És mais infantil do que eu e ainda arranjas coragem para me chamares infantil.
- Meu querido amigo, agarra na esfregona e trata de ir limpar o que sujaste, se fazes intenções de comer da lasanha que estou a fazer.
- Minha linda, para comer da tua lasanha eu faço o que tu quiseres! Estou a ir...
A lasanha está no forno. O André ainda deve andar a secar a água, que despejou pela casa e eu vou pôr a mesa.
Passo pelo piano e toco umas notas. Desisto de pôr a mesa.
Sento-me no banco novamente, lá fora, o Sol já quase não espreita. Mergulho nas teclas e começo a tocar uma música, que nós adoramos. Vimos num filme e desde logo, disse que tinha de conseguir tocá-la. Depois de algumas tentativas, consegui.
O André desceu as escadas a correr, com um sorriso na cara.
Sentou-se ao meu lado e tentámos cantá-la ao som do piano, mas só nos saía o refrão “(...)Open up your eyes / Then you'll realize / Here I said was my / Everlasting love(...)” e umas boas gargalhadas.
O forno deu sinal. A lasanha está pronta.
- Então e a mesa não está posta? Queres que ponha lá as coisas?
- Não é preciso, servimo-nos na cozinha e comemos no sofá. - disse-lhe enquanto me dirigia para a cozinha.
- Já vi que estás preguiçosa! - disse e veio junto a mim, dar-me um abraço - Tinha muitas saudades tuas!
- Eu também meu amigo, muitas mesmo. Agora vamos ver se não perdi o jeito e se a lasanha continua a ser a minha especialidade.
Fui ao frigorifico buscar a Coca-cola, que o André adora e fui até à sala, que graças à lareira já está bem quentinha.
Comemos a lasanha, que se revelou o sucesso do costume, tendo em conta o apetite voraz do André e aproveitámos para pôr a conversa em dia.
Comecei a sentir-me muito cansada e convidei-o a dormir lá em casa.
Antes de nos deitarmos, pediu-me para tocar uma canção de embalar e assim o fiz.
Perguntou-me se podia ficar a dormir no sofá, uma vez que a sala está quente.
- Claro que podes! Vou buscar uma almofada e a roupa para pores no sofá.
- Eu vou contigo, assim ficas já no teu quarto deitadinha e eu trago as coisas para baixo.
Fui buscar a almofada e a roupa para ele se deitar e mudei-me na casa-de-banho.
- Agora vais deixar-me dormir? - perguntei-lhe depois de sair da casa-de-banho.
- Vem cá deitar-te, para eu te aconchegar.
Deu-me um beijo na testa, aconchegou-me e saíu.
- André!
- Diz...
- Se precisares de alguma coisa, diz! Boa noite...
- Obrigada! Tu também. Bons sonhos...
Não é fácil adormecer. Ponho-me a pensar em tantas coisas, que acabo por me perder.
Até que começo aos poucos a fechar os olhos e a ceder ao sono.
- NÃO! NÃO! MAS QUEM ÉS TU? ONDE É QUE ESTOU? QUE MÚSICA É ESTA? NÃO! O QUE ESTÁ A ACONTECER? NÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃÃOOOOOOOOOO!
Acordo em sobressalto e segundos depois, já tenho o André ao pé de mim.
- O que foi? Estás bem? Continuas com esses pesadelos? Porque é que não me disseste nada? Pensei que já tivessem parado.
Abraça-me fortemente. Muito protector, como sempre.
- Eles paráram, durante algum tempo, mas voltaram e hoje foi horrível.
Chorava e soluçava. Sentia um medo terrível. Um medo que tinha vindo do meio de um sonho, que não sei o que significa.
- Que bom ter-te aqui André. Desculpa se te assustei.
- Não precisas pedir desculpa.
Limpa-me as lágrimas do rosto com as suas mãos, o meu querido amigo e sem que me desse conta... beijámo-nos.
Nunca me senti tão calma e o medo desapareceu, por momentos, esqueci-me dos pesadelos.
- Desde que te conheci, que espero por este momento. - disse-me, enquanto me olhava nos olhos.
Vi alguma mágoa, no seu olhar, o que me deixou incomodada.
Levantei-me e desci as escadas apressada, até chegar à cozinha, onde bebi um copo com água. Estava seca e a minha cabeça, funcionava a mil à hora.
Ele demorou um pouco a descer. Deve estar com receio do que poderei dizer. Não o censuro.
Começou a vestir as suas roupas que já estavam secas e veio à cozinha perguntar-me. - Estás melhor?
- Um pouco... mas não muito.
- Eu vou andando. Se precisares de alguma coisa liga-me para o telemóvel. Já sabes que venho a correr.
- Tens mesmo de ir? Preciso de ti!
- Não tenho de ir, mas acho que será o melhor para os dois.
Senti um calafrio enorme e desmaiei.
Acordei deitada numa cama de metal, com o André sentado num sofá, a dormitar.
Sinto-me sem forças.
- André...
- MAFALDA?!... Graças a Deus! Como é que te sentes?
- O que é que aconteceu?
- Estávamos na tua cozinha e de repente caíste no chão. Levei-te para o sofá e tentei que acordasses, mas não acordavas e trouxe-te para o hospital. Desculpa!...
- Desculpo o quê?
- Tudo!
Pedi-lhe que não dissesse mais nada e abracei-o. Estou tão confusa. Ainda não consegui entender o que se passou.
- O que disseram os médicos André?
- Disseram que foi um desmaio, mas que houve uma pequena alteração nos teus batimentos cardíacos. Mas que daqui a pouco passavam por cá, para te darem alta.
- Deve ser por isso que me sinto tão cansada.
Os médicos deram-me alta e regressámos a minha casa.
O André levou-me para o quarto, para descansar e pedi-lhe para ficar comigo. Acabámos por adormecer abraçados.
Passadas algumas horas, acordei de repente, com uma música, que vinha da sala, do piano.
Olhei para o lado e o André dormia como um anjo.
Levantei-me, vesti o robe e desci as escadas. A lareira está acesa (mas não a acendi e o André também não) e a música parou.
Se calhar a música, é de algum carro que passou por aqui e a lareira, pode ter sido o André, que se levantou durante a noite e a acendeu.
Voltei para a cama e sem querer, acordei-o. Beijei-o e ele retribuiu. Começou a beijar-me o pescoço e os ombros e acabámos por nos deixar levar. Foi mais forte do que eu.
Será que podemos querer muito uma coisa e não saber?! Eu não sabia, mas fui a tempo.
Adormecemos e de manhã acordámos os dois, com um sorriso parvo na cara. A minha vontade era ficar abraçada a ele o dia todo e ele ía adorar.
Enquanto tomámos o pequeno-almoço, perguntei-lhe se tinha ouvido alguma coisa durante a noite e se tinha acendido a lareira.
Disse-me que não tinha ouvido nada, mas que tinha acendido a lareira, porque a casa estava gelada. Contei-lhe o sucedido e concordou, quando lhe disse que o mais certo seria ter passado algum carro com a música muito alta.
André ía até ao trabalho, porque apesar de estar de férias, pediram-lhe que ele os ajudasse, num novo artigo, muito importante para o jornal.
Nessa noite, depois de adormecermos, voltei a acordar com a mesma melodia, mas mais intensa e rápida.
Desci as escadas e deparei-me com as cortinas todas abertas e as teclas do piano mexiam furiosas.
Senti um medo profundo. Fechei o piano e as cortinas e quando ía subir as escadas, para regressar ao quarto, as cortinas abriram-se e a melodia, começou a ouvir-se.
Nunca tinha ouvido tal melodia, em toda a minha vida. Fiquei parada em frente ao piano, completamente imóvel. Não me conseguia mexer. Queria chamar o André, mas da minha boca não saíam palavras.
Uma força empurrava-me para o piano e acabei por me ver, reflectida nos vidros da janela, com uma estranha luz em volta. Apoderou-se de mim uma estranha energia e comecei a tocar uma música, que jamais tinha aprendido. Não eram as minhas mãos que tocavam naquele piano. Não era a minha alma, nem a minha paixão.
Ouvi os passos do André a começarem a descer as escadas. Queria dizer-lhe para voltar para trás, mas não conseguia.
Quando chegou à sala perguntou-me o que estava a fazer, a tocar piano àquela hora.
- ESTOU NA MINHA CASA! QUEM ÉS TU PARA ME FAZERES PERGUNTAS DESSAS?
Mas de quem é esta voz grossa?
- Andrééééééé!!!
O André acabou de ser projectado com toda a força, contra a porta da rua e eu continuo imóvel. O meu corpo não me obedece.
Volto-me para o piano e as minhas mãos descontroladas continuam a tocar a mesma melodia frenética.
Toco a última nota...
Acordo meio zonza, do chão da sala, junto ao piano.
Corro para a porta da rua onde permanece o André, ainda inconsciente. Chamo uma ambulância.
O André ficou bem, mas disse-me que deveria tirar o piano da minha casa e que mesmo que não quisesse desfazer-me dele, que arranjasse um lugar onde guardá-lo.
Fiz como me pediu, mas algo me dizia, que o problema não residia no piano e foi a partir desse momento que comecei a minha investigação.
Ele foi morar comigo e nunca mais tivemos nenhum acontecimento semelhante, o que não fez reduzir a minha curiosidade.
Só descansei quando descobri tudo!

Comentários

Unknown disse…
Obrigas-me a ler isto tu( muito bem escrito) e depois não me dás o final?
Tânia tenho quadse o dobro da tua idade isso não se faz...
gostei muito, li de uma penada, quase sem respirar
parabéns
beijo

Mensagens populares deste blogue

3º Calhau a Contar do Sol

X - Acto

A história mais linda...