Egoísmo

Recordo os nossos primeiros beijos. Recordo quando ainda inclinavas ternamente, a cabeça e me afastavas as mechas de cabelo do rosto, enquanto me beijavas, até ficarmos sem fôlego.
Nada deixava adivinhar as tuas intenções. Os teus olhos mentiam e faziam com que me embriagasse cada vez mais.
Hipnóticos e misteriosos... Verdes... entranhavam-se em mim, na minha pele... por todo o corpo.
Foi numa noite, completamente ébria, que me fizeste tua.
Enquanto me beijavas, voltaste a afastar as mechas de cabelo e passaste a mão suavemente pelo meu pescoço, onde fincaste os dentes, até conseguires saborear o meu sangue.
Não conseguiste evitar as lágrimas, porque te invadiam sentimentos que nunca antes tinhas experienciado. O teu coração morto, parecia por momentos, bater a um ritmo alucinante.
Desmaiei durante alguns instantes e quando acordei, senti um terrível sabor a sangue na boca.
Senti o meu corpo a tentar dizer-me alguma coisa, só não entendia o quê.
Estava muito confusa e sentia-me fraca!
Olhei pela janela. Estavas lá fora a fumar, que apesar de não te saber a nada, esse vício tão humano, aproximava-te de alguma forma, daquilo que gostarias de ser.
Hoje tenho essa certeza!!!
Mal me conseguia mexer e doíam-me as veias, como se o meu sangue estivesse a fluir ao contrário.
- O que se passou?
- Tudo! Passou-se tudo, minha linda. A partir de hoje, quero que fiques sempre do meu lado. Não te preocupes com nada, porque irei proteger-te com todas as minhas forças. – disseste-me, enquanto provavas o teu próprio sangue.
Beijaste-me de seguida, ainda com o teu sangue na boca e à medida que se espalhava pelo meu corpo, apoderava-se de mim uma sensação de poder e ao mesmo tempo, de morte.
Olhavas-me atentamente e sabias exactamente o que estava a sentir.
Dizias-me que a dor iria terminar dentro em breve e daqui para a frente, jamais poderia existir algo que me fizesse sofrer.
Ninguém me poderia fazer mal e por muito tempo ninguém ousou fazer.
Explicaste-me tudo com muita calma. Não me querias assustar. O teu medo de me perderes era imensorável.
Temias que te visse como um monstro.
Nessa noite levaste-me para tua casa. Uma casa fantástica, com uma decoração bastante moderna e minimalista para alguém com a tua idade.
Pediste que me pusesse àvontade, mas que ficasse na sala, enquanto preparavas algo.
Quando regressaste, pegaste-me na mão e levaste-me...
Levaste-me até ao quarto, onde tinhas acendido, pelo menos uma centena de velas, algumas com cheiros e com cores.
A cama, tinha por cima dos lençóis brancos de seda, pétalas de rosa, de um vermelho tão intenso, como o perfume que emanavam.
Nessa noite surpreendeste-me e rendi-me.
Em cima da cama de joelhos, de frente um para o outro, dava para te sentir respirar.
Passavas as mãos pelo meu corpo, enquanto me beijavas e me dizias o quanto a minha pele é macia.
Aproveitei para te ir despindo lentamente e acabaste por fazer o mesmo, à medida que me deitavas, com muito cuidado.
Sentia-me a entrar em transe, quase como se estivesse drogada e sentia-te cada vez com mais intensidade.
Sussurraste-me ao ouvido:
- Este coração, pode estar morto... pode não bater... mas pertence-te. Amo-te!
Depois de fazermos amor, adormecemos.
Quando acordei, não te encontrei a meu lado.
Levantei-me da cama, com o lençol enrolado ao corpo.
Fui levada até um espelho de pé, que se encontrava num canto do quarto.
Com os dedos finos e frios, toquei o espelho que reflectia algo que não reconhecia.
Procurei-me e não me encontrei. Deixei cair o lençol.
Toquei-me. Estou gelada!
Invadem-me os ouvidos mil sons, os olhos mil imagens, o nariz mil cheiros... na boca, permanece o sabor a sangue... o teu sangue, que me transformou.
Sinto-me com uma estranha vida, mas estou morta.
Este poder que sinto crescer dentro de mim, assusta-me.
- Hás-de habituar-te minha linda. Vais ver como vais gostar! – disseste-me ao apareceres por detrás de mim.
Apanhaste o lençol do chão e aconchegaste-me com ele. Abraçaste-me, enquanto sorrias.
Deixei-me ficar durante alguns instantes abraçada a ti.
- Tenho fome. – disse-lhe.
- Estás preparada? As primeiras vezes não vão ser fáceis, mas acabarás por te habituar... todos nós nos habituamos!
- Vou vestir-me... já vou ter contigo!
- Tens uma coisa para ti, por cima do baú. Vai espreitar. Espero por ti no jardim.
Por cima do baú, estava um embrulho... uma caixa preta com um laço vermelho.
Quando a abri, encontrei um vestido comprido “vermelho-sangue”, de um tecido aveludado. Vesti-o, apesar de ser muito diferente das roupas que costumava usar e estranhamente, senti-me bastante confortável.
Fui até ao jardim, onde me esperavas, a fumar deitado na relva, junto das rosas negras.
Sentiste-me aproximar e num movimento rápido, levantaste-te, trazendo na mão uma das rosas.
Cheiraste-a e ofereceste-me com um gesto digno de um cavalheiro.
As tuas mãos sangravam dos espinhos que tinham ficado entranhados, mas rapidamente sararam.
- Estás linda, meu amor!
A casa dele, ficava perto duma zona residencial. Foi para lá que me levou, para iniciar o jogo do gato e do rato.
- Estás a vê-los? Eles não te podem fazer mal, mas tu podes mata-los com um simples gesto... basta respirares com essa intenção... basta olha-los fixamente e hipnotiza-los, retirar-lhes o sopro de vida que lhes resta. Escolhe um! Não tenhas medo!
- Não quero! Não quero nada disto. Nunca vou ser capaz! – digo-lhe, enquanto lhe viro de costas.
- Claro que vais! Corre-te nas veias, esse poder. Já nada podes fazer para nega-lo.
Faz o que tens a fazer, ou morres à fome. Sabes que jamais deixarei que isso aconteça.
Se não os matares tu, eu mesmo o farei. Queres ver como o faço?
Nessa altura, passava por nós uma criança e ele, sem qualquer tipo de humanidade, dirigia-se a toda a velocidade para ela. Para lhe arrancar a vida, que era ainda tão curta.
Nesse momento transformei-me. Senti-me invadida por uma força sobrenatural. Foi num ápice que me desloquei para junto dele e o agarrei no braço, com tal força, que se viu sem forças para fazer o que quer que fosse.
Sorriu!
- Vês?! Faz parte da tua natureza.
Virei-lhe as costas e vim-me embora.
Num instante colocou-se à minha frente. Só o olhei, mas nesse momento, esqueci-me do amor que sentia. Levantei a mão, com a palma da mão paralela ao corpo dele e ela reflectiu o que eu queria... distância! À medida que caminhava com a mão dessa forma, ia afastando-o e apesar da sua luta, não conseguia chegar-se perto de mim.
Foi nesse momento que se apercebeu, que eu era diferente... diferente, de outros que foi escolhendo ao longo dos anos, para seus amigos e amantes, mas que fazia deles o que quisesse, dizendo-lhes ou não que os amava.
Eu tinha uma força incrível, mas só ele se tinha dado conta disso.
Nessa noite, tive uma espécie de estado febril. Não tinha comido nada o dia todo.
O meu corpo doía, as minhas veias pediam sangue.
Gritei, chorei, cheguei ao cúmulo de tentar o suicídio.
Já estava morta!!! Todas as feridas saravam instantaneamente. Não existia corte que perdurasse.
Paralisei!
Foi nessa altura, que conseguiste entrar no quarto. Devias ter visto a tua cara de desespero.
Voltaste a dar-me do teu sangue e mais uma vez, foi o único sabor que senti na minha boca.
Passaste-me a mão pela cabeça. Pegaste-me ao colo e levaste-me para a cama, onde me deitaste.
Estava demasiado fraca, mas o teu sangue ia-me reanimando lentamente.
Ficaste comigo toda a noite, pelo menos até eu adormecer.
Ao acordarmos, pediste-me desculpa baixinho. Disseste que se pudesses voltar a dar-me a vida que o farias, sem pensares duas vezes. Tinhas sido egoísta. Querias-me a teu lado a todo o custo e não pensaste o quanto isso me poderia fazer sofrer.
A partir daí, aos poucos acabei por me conformar com o meu destino.
Depois de muitos e muitos anos, ter de matar alguém, era algo que ainda me afectava muito e tentava sempre fazê-lo, a quem já estava no final da vida.
À medida que o tempo passava, os pesadelos com as pessoas que morriam nos meus braços, começavam a tornar-se insuportáveis e estava a um passo da loucura total.
Sentias-te impotente perante o que se passava comigo, a única solução que encontraste foi começares a matá-los, pelos dois, mas isso não facilitava em nada as coisas para mim.
Deixei de dormir... já não te reconhecia... já não me reconhecia.
Vagueava pela casa, durante horas a fio, a contar, a dizer em voz alta os nomes de todos que me tinham alimentado.
Chegou um dia em já não aguentava mais... fui ter contigo, com as lágrimas a escorrerem-me pelo rosto e implorei-te para que me matasses.
Deste-me um abraço bem forte e disseste-me que jamais irias conseguir matar quem amas.
Empurrei-te!
- Foste tu que me puseste assim, lembras-te!? Não quero viver assim... não consigo... Disseste que o sofrimento iria acabar, mas só piorou... só piorou!!! Se não me matares como te peço, irei pedir a outro. Sabes bem, que saíndo desta casa, não faltarão candidatos para o fazerem.
Deixa de ser egoísta e mata-me!!! - disse-lhe gritando.
Deixei-me cair no chão, sem forças e com olhos inundados no desespero.
Ajoelhaste-te junto a mim e também no teu rosto caíam as lágrimas, da tristeza profunda que já não conseguias esconder. Limpaste-me as lágrimas e disseste:
- A dor que sinto de te ver assim, vai além da compreensão humana. O culpado do teu sofrimento sou eu e nunca consegui diminuir a tua dor, nem mesmo com o Amor que sinto por ti. Vou fazer o que me pedes, mas só porque não há mais nada que possa fazer neste momento, para te fazer feliz.
Olhei-o nos olhos pela última vez... o meu Amor...
Entretanto ele agarrou numa estaca... beijou-me... um longo beijo... o último.
Quase sem me dar conta, tinha a estaca espetada no meu corpo... trespassou-me o coração e o meu corpo, transformava-se em cinza.
Ainda ouvi:
- Amo-te!



Vampiros, não são só aqueles que nos sugam o sangue... São todos aqueles que nos sugam impiedosamente os sentimentos!

Comentários

Unknown disse…
os sentimentos... esvaiem-se entre os desejos...submissos ou nem por isso...
MIG-L disse…
Agradeço as tuas simpáticas palavras, deixadas a deambular pelo meu mundo...
Adoro também os teus escritos.
Força !

Mensagens populares deste blogue

3º Calhau a Contar do Sol

X - Acto

A história mais linda...